
Passeio pelas ruas de Alceu Valença
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Biografia ‘Pelas ruas que andei’ revela o percurso do pernambucano para se tornar um dos principais artistas do Brasil
Atravessando um riacho ainda criança, Alceu percebeu que as rodas do caminhão em que estava deixava para trás rastros que se desfaziam rapidamente pela estrada. “A ventania e o tempo não têm compaixão”, canta ele em ‘Porto da saudade’ sobre essa imagem que emprestou a sua música a característica de ser itinerante. “Onde é que tu vai, senhora estrada? Companheira fiel do meu destino”, diria ele também em ‘Senhora estrada’, que o define como um poeta andarilho. Prestes a completar 77 anos enquanto percorre o país em longas turnês, Alceu Valença é visto quase todos os dias de folga caminhando no calçadão de Ipanema e Leblon. Uma carreira e uma trajetória de vida que se transformaram na biografia Pelas ruas que andei (Cepe Editora, 592 páginas, R$ 70), do jornalista Julio Moura.
Para produzir o livro, Alceu andou pisando pelas ruas do passado, criando calo em seu pé caminhador, precisando recordar de fatos que o incomodam e causam um mal estar. “Por exemplo, quando ele teve um infarto. Alceu não gosta de revisitar aquilo. Teve também o momento da política, em 1973, durante a ditadura militar, em que ele teve muitos amigos presos e torturados no Rio de Janeiro. É doloroso para ele revisitar esses momentos espinhosos”, cita o biógrafo, que é assessor de Alceu Valença há quase 15 anos. Isso deu a ele uma posição privilegiada devido à aproximação que consegue com o artista, mas também cria um conflito devido à relação de trabalho. “Uma vez, eu fiz um workshop com Ruy Castro, e ele falou que se você conviveu com o seu biografado isso não é uma biografia, é um livro de memórias. Assimilei a lição, mas em absoluto tentei fazer um livro de memórias. Pelo contrário, a assertiva de Ruy Castro me inspirou a tentar buscar um distanciamento”.
Pelas ruas que andei teve início em 2019 e foi produzido durante a pandemia, se valendo mais de pesquisas em jornais, revistas, livros e outras publicações, do que em entrevistas presenciais com pessoas que passaram pelas trilhas do músico pernambucano. Isso dá ao livro a particularidade de servir como uma reverência ao jornalismo cultural a partir da análise do diálogo do biografado com a imprensa. “A imprensa tem um respeito e quase uma veneração por ele, eu percebo. Alceu pode se sentir conceitualmente incompreendido aqui e ali durante a carreira, mas ele sempre foi bem recebido pela imprensa desde Molhado de Suor, disco de 1974 com Geraldo Azevedo. Desde o começo ele deu grandes entrevistas, com discursos contundentes e de forma bem categórica”, defende Moura.
Através desses textos fica evidente que Alceu entende muito bem a origem de suas influências e inspirações, falando de forma muito aberta sobre si mesmo. Suas canções são bastante autorreferentes e muito autobiográficas. Ele não tem dificuldades em descrever o valor do próprio trabalho, sem falsas modéstias. “A opinião de Alceu sobre o próprio trabalho está consolidada há muito tempo. Embora ele diga em ‘Agalopado’ que é ‘o porta-voz da incoerência’, o discurso dele é muito coerente”, afirma Moura, que já havia escrito, em 2015, Por trás da luneta, um diário de filmagens sobre o filme A luneta do tempo, dirigido por Alceu. Com a biografia concluída, no final do ano passado, Julio Moura mostrou o livro a Alceu, que contestou algumas passagens. A inserção dele no contexto dos movimentos psicodelia nos anos 1970 e a consideração do álbum Vivo! (1976) como sendo do rock foram alguns dos alvos das reclamações. Outro exemplo é o apoio que Alceu deu, em 1990, ao candidato ao governo de Pernambuco, Joaquim Francisco, que disputava a eleição contra Miguel Arraes, nome defendido pela esquerda.
Mas o que marca o livro é mesmo o percurso de Alceu ao longo dos 50 anos de palco, teatro, cinema, picadeiro, tapume e meio de rua. Percurso que lhe fez cantor, compositor, instrumentista, poeta, diretor de cinema, ator e advogado. O autor de hits como ‘La belle de jour’, ‘Tropicana’, ‘Bicho Maluco Beleza’, ‘Espelho cristalino’ e ‘Coração bobo’ tem sua história contada de forma cronológica e com uma edição robusta, com riqueza de fotografias. A obra também dá espaço para se debruçar musicalmente no repertório de Alceu, que sempre foi de coco, maracatu, forró e frevo, misturando tudo com guitarra e bateria, em um estilo de som pré-manguebeat. “Com Jackson, aprendi a dividir melhor, a cantar com mais ritmo, a dividir as palavras, as inflexões. Comecei a cantar mais forró, porque antigamente eu pegava as minhas músicas e botava muito rock dentro. Claro que era música de raiz, totalmente nordestina, mas os ataques e a bateria eram pesados demais. A partir dele, veio o suingue da minha música”, reflete Alceu na publicação.
As ruas pelas quais Alceu andou têm a pedra fundamental instalada na fazenda Riachão, em São Bento do Una, Pernambuco. Lá, o canto dos pássaros e os aboios lhe deram as primeiras informações sonoras. Só depois viria o violão e a viola de seu avô, que brincava de fazer repentes, e os emboladores e cordelistas da feira livre. Foi quando tomou destino para Garanhuns, e de lá para o Recife, onde ouvia através do rádio os boleros, os tangos, as valsas e toda sorte de ritmos internacionais. Na Rua dos Palmares, no bairro da Boa Vista, era vizinho do poeta Carlos Pena Filho e via passar de sua porta os blocos de maracatu, frevo e caboclinho. Foi de lá para o Rio de Janeiro, para os EUA, morando também em Paris. Nessa jornada, o que ele nunca deixou pelo caminho foi a sua vontade de ser livre e de expressar sua paixão pelas coisas brasileiras.
O lançamento da biografia ocorre no próximo dia 27, no Recife. Dois dias antes, no próximo domingo, Alceu será a atração principal do São João em Campina Grande. Uma noite de autógrafos com a presença do músico e de seu biógrafo, porém, está sendo considerada apenas para o dia 17 de agosto, quando ele apresenta no Teatro A Pedra do Reino, em João Pessoa, o concerto Valencianas, com a Orquestra Ouro Preto. Pelas ruas que andei ajuda a dar a Alceu o tratamento devido ao artista fundamental para descrever a alma dos brasileiros. Uma forma de eternizar os rastros que ele deixou na cultura brasileira, apesar de ele saber desde criança que se “você quer parar o tempo, o tempo não tem parada”.
Fonte: A União
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