Livro publicado pela Cepe alça Cornélio Penna à categoria de autor-intérprete do Brasil
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Autor de romances classificados como ímpares para o seu tempo, Cornélio Penna (1896-1958) supera a concepção de que seria um mero escritor intimista, introspectivo. O modernista figura no rol de autores-intérpretes do Brasil. A conclusão está em Vidas matáveis em Cornélio Penna (Cepe Editora), do pesquisador Luiz Eduardo Andrade, a ser lançado no dia 28 de janeiro (terça-feira), 19h, no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), Recife, quando o pesquisador participa de um bate-papo com Fábio Lucas de Barros e Silva, presidente do Conselho Editorial da Cepe e membro da Academia Pernambucana de Letras (APL). O livro revisita os romances cornelianos, quatro ao todo, e renova o olhar crítico sobre a obra do ficcionista. Na condição de autor-intérprete, Luiz Eduardo afirma que Cornélio estaria teoricamente no patamar de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Carolina Maria de Jesus.
Vidas matáveis é uma obra de fôlego teórico. Em 344 páginas, Luiz Eduardo recorre a conceitos de biopolítica, homo sacer (homem sacro; ser matável) e estado de exceção para chegar ao entendimento da complexidade e importância dos romances do autor fluminense - Fronteira (1935), Dois romances de Nico Horta (1939), Repouso (1948) e A menina morta (1954). Nestes, o pesquisador encontra elementos comuns: o uso dos corpos das mulheres e dos escravizados para a manutenção dos poderes ideológico, político e econômico, através do casamento, da família e do trabalho, por exemplo. Sobre isso, a professora de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Sabrina Sedlmayer, ao assinar o prefácio, é cirúrgica. Ela afirmar que o livro possibilita entender que “a nervura do romance corneliano localiza incisivamente alguns dos pontos onde a nossa sociedade foi capturada pela biopolítica: a família, o casamento e a escravidão, culminando no futuro irrealizável.”
Luiz Eduardo diz não ter dúvidas de que as mulheres e as personagens negras são as vidas matáveis nos romances cornelianos. “É a vida delas que está à disposição da comunidade, nesse caso a família, com casamentos tratados como ‘negócios’, cujo intuito era perpetuar uma forma de sociedade que se queria ‘civilizada’, mas que subsistia em virtude da conveniência econômica e política sustentada pela exploração da vida de pessoas escravizadas”, detalha. Para retratar as vidas matáveis, os romances, com enredos ambientatos entre os séculos XIX e XX, giram em torno de núcleos familiares patriarcais, arruinados moral e economicamente, da escravidão e da pequena cidade do interior mineiro. A cidade descrita está ligada às memórias de Cornélio em Itabira do Mato Dentro, hoje Itabira, onde morou na infância.
Ao tecer os enredos, Cornélio mostra que as personagens têm uma relação tensa com a estrutura de poder em que estão inseridas. É assim, por exemplo, com Maria das Dores (Dodôte), em Repouso, e D. Mariana e Carlota, em A menina morta. Nesta estrutura, o trabalho e o casamento são os principais dispositivos ativados, mediados pela obediência. Segundo Luiz Eduardo, é a partir do trabalho e do casamento que os problemas familiares, os dramas pessoais e a exploração do outro são inseridos nas narrativas. “Com isso, o traço que marca fundamentalmente a literatura de Cornélio Penna é a forma como alguns corpos estão à disposição de um (bio)poder que modaliza os comportamentos,” enfatiza.
Para o pesquisador, a literatura de Cornélio passa muito distante da ideia de congraçamento entre as raças, que conduziu a figura mítica do mestiço-brasileiro desde o romantismo e se firmou na historiografia no decorrer do século XX. “Ele não promove uma caricatura do Brasil, ao contrário, procura discutir, sob o prisma da existência, questões maiores ligadas a diversas tensões presentes na nossa formação nacional”. A concepção de mundo corneliano confronta o pensamento de estudiosos como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Cornélio não fez apologia ao negro ou a qualquer grupo social. Luiz Eduardo completa que a escrita menos afetada do modernista é uma oportunidade rara na literatura brasileira para se enxergar “os objetos sem os coloridos habituais que em algum momento turvaram o olhar ou mesmo condicionaram os afetos dos transeuntes”. E vai além. Para ele, a literatura de Cornélio coloca em xeque os instrumentos do progresso implantados no Brasil à custa das violências corporal e simbólica, bem como do esquecimento.
Diante da complexidade e riqueza da escrita de Cornélio, compreende Luiz Eduardo, que ser um autor-intérprete do Brasil extrapola o lugar-comum de buscar a gênese do país, incluindo também no seleto grupo de autores-intérpretes aqueles que abriram espaço para a denúncia dos problemas nacionais. Cornélio enveredou por este caminho muito bem, embora sem obter a projeção de outros modernistas. Na época, os seus romances estavam na contramão da prosa preponderante, a regionalista, de José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos. E eram vistos como obras de um escritor intimista, introspectivo, sombrio. Ao contrário de tais críticas, o autor de Vidas matáveis prefere o termo “escritor anfíbio”, cunhado pelo poeta, contista e romancista Silviano Santiago, para classificar Cornélio. Anfíbio por não se desvencilhar do debate político e não se furtar à experimentação artística.
CORNÉLIO PENNA
Fluminense de Petrópolis, Cornélio Oliveira Penna nasceu em 20 de fevereiro de 1896. Órfão de pai e mãe aos 3 anos, morou ainda criança em Itabira do Mato Dentro (MG), São Paulo (SP) e Campinas (SP). Após se formar em Direito, em 1919, mudou-se para o Rio de Janeiro (RJ), onde iniciou a carreira de pintor, realizando exposições e desenvolvendo as atividades de gravador, ilustrador e desenhista em diversos jornais. Em 1935, desistiu da carreira de pintor e passou a se dedicar à literatura. Fronteira (1935) foi o seu primeiro romance, seguido de Dois Romances de Nico Horta (1938), Repouso (1948) e A menina morta (1954), que lhe rendeu o segundo Prêmio Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo, em 1955. A primeira edição do prêmio, em 1954, foi conquistada por José Lins do Rego com o livro Cangaceiros. Cornélio faleceu em Petrópolis, no dia 12 de fevereiro de 1958, deixando um romance inacabado.
SERVIÇO:
Lançamento do livro Vidas matáveis em Cornélio Penna, de Luiz Eduardo Andrade
Quando: 28.01.2024 (terça-feira)
Horário: 19h
Onde: Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), na Avenida Rui Barbosa, 960, Graças, Recife/PE
Preço: R$ 70,00
Fonte: Agenda Cultural do Recife, 28/01/2025
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